De 5/8/2023 a 16/9/2023
Feres Khoury
pinturas, desenhos e gravuras
05 agosto I 16 setembro 2023
PINTAR PAISAGENS
Na introdução à monografia dos artistas de Worpswede, Rainer Maria Rilke disse que quem fosse escrever a história da pintura de paisagens se veria às voltas com o estranho, o desconhecido, o incompreensível. O fato de Rilke ter dito isso no começo do século XX, e de posteriormente terem sido publicados estudos importantes sobre o assunto, não altera essen- cialmente a questão: na paisagem estamos sempre perdidos, desprovidos de referências que nos situem. Pode até haver pinturas que permitem o reconhecimento desta ou daquela cidade ou região, mas são antes vistas pictóricas; raramente podem ser consideradas paisagens (Erwin Straus abre exceção para algumas pinturas venezianas do setecentos e para a vista de Delft, de Vermeer).
Esse estranhamento, explica Rilke, é porque estamos habituados a lidar com figuras, com números, e a paisagem não tem números; estamos acos- tumados a enxergar nos movimentos uma manifestação da vontade, e a paisagem não manifesta nenhuma vontade quando se move: as águas sim- plesmente correm e refletem as imagens tremulantes das coisas, e os bos- ques crescem rumo a um futuro que não viveremos.
Ainda que se identifiquem figuras e objetos cotidianos numa pintura de paisagem, ainda que nela se possa contemplar o mundo diário e operante, os atos e as coisas não atendem mais a um fim prático: estão desativados, como diz Giorgio Agamben, e se apresentam como algo de que não pode- mos nos apropriar.
Não desfrutamos a paisagem, antes a sofremos, mesmo que alegremente. Estamos imersos nela, porém, por se tratar já de uma paisagem e não mais de meio ambiente ou de pura natureza, ela está fora de nós. Ela nos é si- multaneamente familiar e estranha, assim como para um bebê o corpo da mãe é percebido como um outro e, ao mesmo tempo, como continuidade do seu próprio corpo.
A paisagem é uma experiência na acepção forte da palavra; é uma prova que nos empurra para fora do habitual, uma espécie de desterro. Nesse sentido, não pode haver paisagem familiar, domesticada, e caso assim se apresente, ela só será propriamente paisagem se evocar, junto a tudo aquilo a que já estamos afeitos, o distante, o ausente, o horizonte incógnito e inatingível. A paisagem implica o contato com o desconhecido, com o mistério que está em parte dentro e em parte fora de nós. Ela não é nem pura subjetividade, uma projeção da nossa intimidade sobre o exterior, nem pura objetividade. O par sujeito-objeto é abalado na experiência da paisagem. Estamos diante de um enigma, pois o que somos nós e as coisas que nos rodeiam quando desativados? Como podemos nos aproximar de algo que não está nem cá, nem lá?
A paráfrase é conhecida, mas talvez caiba de novo aqui: se quisermos conhecer o centro, o núcleo de alguma coisa temos que inventá-la... e inventar também o seu centro, pois este é concretamente inacessível. Esfacela-se a pedra em busca do seu núcleo, e tudo o que se obtém são fragmentos cada vez menores; o centro sempre escapa; chegar a ele é dar com o nada.
Não se inventa uma paisagem; ela não é uma invenção; ela nos atinge com uma materialidade ao mesmo tempo comum e alheia a nós, e é antes pela imaginação da matéria do que pelas suas formas que a pro- vamos. Trata-se de matéria originária, magmática e enigmática em sua origem, em sua abertura ao porvir e em suas transmutações. Ela não é uma charada ardilosamente construída que somos desafiados a deci- frar. É preciso aproximar-se dela com cuidado e inocência, captá-la sem capturá-la, preservar o seu mistério, que é o mistério de tudo o que incessantemente aparece, se transforma e desaparece.
Nem mesmo o artista inventa a paisagem. Ele tenta fazer o impossível, e nisto está sua grandeza: aludir, com a matéria e os meios de que dispõe, a uma experiência que, por natureza, escapa; flagrar um instante da conver- são contínua dos elementos e das energias sem reter seu processo; propor uma viagem à usina de fissão das coisas que nos rodeiam, tornando-nos cúmplices de uma peregrinação cujo destino jamais se consuma e que, no entanto, detona reações em cadeia que valem por si.
Vladimir Bartalini
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