De 11/5/2000 a 30/5/2000
SERGIO DE MORAES
POLITIPIAS
SERGIO DE MORAES
POLITIPIAS
abertura : 10/05/2000
exposição : 11 a 27/2000
lista de obras:
Auto Retrato
linoleogravura 14,5 x 30,2cm ,1996
Figura Pop
linoleogravura 58,5 x 79,0cm ,1999
Canto do Ateliê
aquarela 22,2 x 36,6cm ,1984
sem título
politipia ,20,1x19,1cm ,1999
Locomotiva
linoleogravura 29,0 x 22,1cm ,1986
sem título
politipia ,19,1x19,3cm ,1999
Cabeça
técnica mista 40,0 x 50,0cm ,1999
Sem título
politipia ,19,4x18,9cm ,1999
LINOLEOGRAVURA
Embora pouco trabalhada atualmente em artes gráficas, a linoleogravura resiste, mais ainda, cresce, em SÉRGIO DE MORAES, que a vem pesquisando há quase vinte anos. Demonstrando as suas muitas possibilidades, realçadas nesta exposição, Sérgio renova-a decisivamente, pois a faz transpor o campo das técnicas rígidas e restritas, para o das flexíveis e complexas. Historicamente, a linoleogravura segue duas direções principais, a do emprego combinado de matrizes e a da ação múltipla exercida sobre uma só matriz, que vai sendo regravada após cada impressão; esta técnica foi introduzida por Picasso na arte moderna e bastante elaborada por ele.
Próximo da direção picasseana na aplicação de cores em uma única matriz, Sérgio entretanto não despreza a outra direção, na medida em que combina impressões e regravações de mais matrizes, o que lhe permite atingir resultados que as técnicas referidas não podem vislumbrar, como a variação da densidade das tintas ou a atenuação da rigidez dos recortes. Por isso, a linoleogravura torna-se, em Sérgio, técnica pictórica, pois colorista nos efeitos tirados de muitas impressões e gravações que jogam com a cor, assim como na atividade múltipla do suporte, entretela, que a um tempo retendo e tamisando as tintas diferencialmente, estende ainda mais a gama das cores e a densidade da matéria.
Tendendo as linoleogravuras anteriores de Sérgio ao recorte que aprisiona a forma e a cor, a politipia, invenção sua que provém da pesquisa linoleográfica, produz, retroativamente, reconcepção do sentido da gravura. O colorismo resultante da sobreposição tamisada das impressões ainda decorre da liberdade a ela essencial na adoção, pela gravura, do aleatório operante na politipia. Pois, rompendo com a ordem seqüencial da impressão do linóleo, a própria noção de projeto gráfico se torna flexível, de sorte que o recorte, como preconcepção e resultado, dá passagem à gravação colorista e, além, à inclusão, no campo gráfico, de gesto alheio à prensa.
Leon Kossovitch
POLITIPIA
A politipia, invenção recente de SÉRGIO DE MORAES, difere da gravura conquanto dela derive como captura de restos de impressão linoleográfica. Feita de restos, a politipia pertence ao conjunto de obras irrepetíveis, afastando-se da gravura e, pela mesma razão, aproximando-se da monotipia. Contudo, esta tem na unicidade do simultâneo entintado o seu princípio, enquanto a politipia é um único de várias impressões, sobrepostas no resultado, singular em cada obra. A politipia não opera diretamente como adição ou subtração, distanciando-se, portanto do metal, da lito, e do linóleo, nos quais isso pode ocorrer. Vizinha da serigrafia, ela pressupõe tamisamento, mas não predeterminado como nesta em uso de recortes e rodo, uniformizadores do resultado.
Ressaltando-se o acaso no processo, a politipia surgiu da observação casual dos efeitos secundários na impressão de linoleogravuras, cuja execução pressupõe a proteção do feltro da prensa com papel vedante, que se torna, como notou Sérgio, um segundo suporte, indireto, a receber os restos da tinta que atravessam a entretela na qual se imprime o linóleo. Recolhendo o que prolifera como acaso, o suporte da politipia retém os acidentes da impressão, como os gerados das desigualdades da pressão na prensa, da saturação e viscosidade diferenciadas das tintas, enfim, dos efeitos que expõem amplo espectro de resultados, o que requer seleção, por parte de Sérgio, dos exemplares aproveitáveis, que não podem ser preestabelecidos.
Derivada, a politipia desgarra-se de sua primitiva, a linoleogravura, contrapondo-se a ela como a mancha à forma, a divagação à ponderação ou o fluxo ao recorte. Entretanto, essa contraposição, patente no início do trabalho de Sérgio, torna-se menos relevante quando se considera o atual processo na gravação e impressão: a linoleogravura adquire, hoje, algumas propriedades da politipia, como o colorismo na interação de matiz, contraste, mancha, matéria. Mais que libertadora da linoleogravura de recortes, a politipia abre leque extenso de ação gráfica, que vai do corte rígido da técnica convencional à invenção gestual fora da prensa.
Leon Kossovitch
POLITIPIA: LAPSO E SALTO
Ensaio crítico sobre a arte gráfica de Sérgio de Moraes
Leon Kossovitch
Soltas ou reunidas em álbum, as politipias de Sérgio de Moraes irrompem, súbitas, em 1998. Não sendo resultado de pesquisa programada ou controlada, característica de seu trabalho minudente, as politipias saltam, prontas, quando menos se espera, de trás das linoleogravuras a que Sérgio se dedica há quase vinte anos. Impressas em papel impermeável, colocado entre a entretela que recebe a impressão linoleográfica e o feltro protetor da placa da prensa, as politipias nascem como efeito de percolação: retendo o excesso de tinta que atravessa a entretela, o papel torna-se um segundo suporte. Segunda, a politipia constitui-se como passagem do papel do estado de dejeto de linoleogravura ao de resto: tamisando irregularmente a tinta impressa dezenas de vezes por placas e recortes de linóleo, a entretela opera como segunda matriz, ainda que indireta, da politipia, pois, de passiva, passa a ativa.
Mais, porém, do que resultado das relações de suportes e matrizes, a politipia é mudança que afeta a posição artística de Sérgio: nela, o gesto distraído de descarte, repetido por anos e anos, é subitamente suspenso e expõe o que se deposita no papel impermeável. No lance, a politipia dilata o campo numeroso das gravuras e, passando da inexistência à existência, institui-se como arte gráfica singular. A invenção de Sérgio ressalta, pois, do que inicialmente é descarte da impressão linoleográfica: atribuível ora ao acaso como feliz encontro, ora à necessidade como rígida conseqüência, a politipia não pertence, contudo, ao instante do achado ou ao intervalo do desenvolvimento: lapso, seu é o tempo que se qualifica em relação ao surgimento e à vicissitude, declarados após centenas de folhas separadas, dezenas delas classificadas, umas poucas destas recortadas e um nome comum a todas elas dado.
Conquanto a invenção requeira tópicas, sendo os lugares desconhecidos da arte nascente, são eles extraídos, pelo menos em sua maior parte, da linoleogravura, a qual, precedendo a politipia, faz em torno de si gravitar conceitos, técnicas, tempo; em 1999, desfeita a relação unilateral do início, as duas espécies de gravuras dispensam precedências pois estabelecem entre si cruzamentos diversos. As temporalizações estão na base da construção, aqui intentada, da obra de Sérgio e, por sua vez, nesta se declaram. A distinção entre um evento original e um desenvolvimento ulterior tende a propor uma temporalização progressiva e fatual, de espécie pedagógica, psicológica ou outra, semelhante, que articule noções impertinentes no que concerne ao surgimento da politipia e às vicissitudes seqüentes à sua instauração; não se trata, pois, de reter noções ligadas à aprendizagem ou ao amadurecimento de uma obra, mas, de mover conceitos que constroem viragens imprevistas.
A construção da viragem considera recorrências de várias espécies, tidas como essenciais à temporalização: tanto o início, quanto qualquer outro momento, assim como os intervalos, circulam e recirculam, retomando-se incessantemente nos dois sentidos. Nem o instante nem o intervalo sendo fatuais, pois construtos, dispensa-se a emoção suposta de um momento épico em que a politipia tenha nascido, mas também se alivia o peso de um intervalo raciocinante, cuja monotonia esteja na reposição do mesmo ou no desenvolvimento regrado do também mesmo, lembrando-se que a emotividade, aqui ligada à rememoração, normaliza o processo; este, entretanto, afastando o afetivo enquanto calor de gênese, procede, glacial, por recolha e classificação de papéis, os quais, por sua vez, exigem a arbitragem de nome com o qual se relancem os conceitos, recursivamente declarantes da própria invenção. Na construção, "surgimento" designa a distinção de politipia e linoleogravura, como diferença de derivada e primitiva: técnica, conceitual, temporalmente derivada, a politipia só pende, entretanto, da linoleogravura em 1998, uma vez que, no ano seguinte, ambas se relacionam como seqüências paralelas e interferentes.
A politipia desponta como canteiro de conceitos, no qual a linoleogravura e outras artes de Sérgio passam a, em grande extensão, conceber-se. No início, todavia, cernindo-se tecnicamente as seqüências, o tamisamento linoleográfico pela entretela suaviza a rigidez dos cortes do linóleo, enquanto a percolação, produzida sob pressão diferencial da placa, é modulada nas áreas tingidas do papel impermeável. Tal derivação não inclui, portanto, a politipia em outras artes do tamisamento, como a serigrafia, que não modula ou diversifica as tintas, pois esses efeitos da impressão linoleográfica em entretela evidenciam a impossibilidade de controle, por parte do impressor, do resultado, inflexão decisiva com que Sérgio passa a debater-se doravante: essa impossibilidade de controle exemplifica outra, ulterior, a de Sérgio manter projetos obsessivantes que linearizem a impressão. Rebatendo-se na linoleogravura em 1999, essa conseqüência deriva a primitiva da derivada sob aspectos básicos seus, invertendo-se a preeminência respectiva das duas espécies de gravuras.
Ao surgir, em continuidade com a linoleogravura, a politipia entende-se, enquanto derivada, como tangente em ponto; depois, porém, as relações interferentes estabelecem-se entre paralelas, sem ponto que as projete convergentes, dada a dispersão proliferante dos pontos de cruzamento em que uma à outra pensa. O ponto de tangência demonstra que, nele, a politipia não é mais escória da linoleogravura e, por acréscimo, tornada reta, entende-se como continuação da curva primitiva. O ponto de derivação corresponde à singularização do papel tingido, ainda não designado ou visto com um nome. Surgida como classe e nome, a politipia separa-se do dejeto, quando, já resto, o papel tingido é exibido como vacilação na qual o papel vedante aparece como potência artística. Como disso, contudo, não há vestígio fatual, pois a potência referida é exigência da construção, não evento que se possa entrever, a folha subjacente passa, de refugo caído, a tingida suspensão, primeira metamorfose, na qual a contemplação se instaura como divagação admirada.
A segunda metamorfose, em que a classe e o nome inventam, com os lugares da linoleogravura, uma arte imprescrita, é o tornar-se obra da folha tingida: passando de dejeto a arte, com a transição suspensiva, ergue-se a politipia, já tintura composta, a merda: o papel deixa de ser refugo e o tingimento, pendência, quando, pulsionalmente, o suporte pintado é ofertado como arte. Todavia, para que haja oblação, ablação se produz na folha tingida: o corte torna a folha tingida folha pintada, composição artística que, ainda, institui a politipia como dom que embala, embelezante, o desejo de contemplar. Constrói-se a primeira metamorfose, aqui, para que a transição da folha pendente evite que se aliste a politipia no sublime, sendo impraticável o salto pulsional do dejeto à merda: há sublime na amplificação poética como conversão do horrendo ao belo, intensíssima também em físico-química como salto de um estado a outro sem transição por intermediário, mas não há sublime no sentido analítico de mudança de alvo pulsional em salto de papel impermeável a papel artístico.
A diferença de dejeto e resto, mas também de dejeto e obra está em que, pulsionalmente, o papel impermeável é algo desinvestido, ao passo que o papel oscilante e o papel composto são libidinizados, assim, sublimáveis. O corte é, portanto, essencial à politipia, que requer, além do nome e da classe, o juízo, em Sérgio togado como tesoura compositora. Tanto a ablação, quanto a oblação são pulsionais, considerando-se a transmutação do olhar aterrorizante em contemplação apaziguada. Na transmutação, o gesto que lança o vedante no lixo é revezado por gesto em que o dejeto vacila e é substituído por gesto que recorta a folha como classe-nome, que se torna janela, assim, a um tempo, moldura e cena, pela qual mergulha a visão apaziguante.
O itinerário das metamorfoses com que se constrói a invenção de Sérgio retém, pois, três gestos, seqüentes e infletidos, que derivam a politipia da linoleogravura e, adiante, põem-nas em paralelo. Na metamorfose final, virando o dejeto merda, declara-se a idealização; mais, como obra única, logo, preciosa, a politipia difere da linoleogravura, que, como iterativa, é tida como arte sem aura. Mas esse quiasma da derivada e da primitiva opõe o ideal ao reprodutivo; outros cruzamentos, menos enfeitiçados pela maquinação reprodutiva, exibem a politipia tangenciando a linoleogravura, e, assim, derivando sua poética das idealizações desta. Em 1999, firmado o paralelismo das duas seqüências gráficas, a poética idealizante encolhe, tornando-se pluma singular de leque aberto em roda; na idealização da politipia, as duas metamorfoses presidem-lhe o nascimento, muito embora este seja operado como corte de tesoura.
A presteza do nascimento da politipia não é a de Minerva saída da cabeça de Júpiter, antes, a de Afrodite feita de eleições sucessivas, tópica conhecida, na qual a seleção das virgens mais belas da Cidade prepara outra, que escolhe as partes de corpo que cada uma delas ostenta como belíssima, para as compor na unidade do corpo da Deusa. Enquanto na tópica grega a eleição subtrai virgens e partes de virgens em vista de uma soma compositiva, a seleção de Sérgio se produz como corte supressivo em que nada, afinal, se acrescenta: instaura-se, nele, em compensação, idealização desconhecida de Gregos, Romanos e outros até o século XVIII, e isso já no nome. Conceito moderno, a idealização é corte de tesoura compositiva que abre janela estética, modela beleza apolínea, sustenta visão apaziguada: o corte, em Sérgio, é transmutação artística de folhas tingidas, ou ainda, pulsionalmente, doma de olhar brabo. Não menos eletivas, as tópicas de iconografia, cor, matéria reúnem em álbum gravuras, pois operam como critérios de convergência de conjuntos coerentes: é no álbum que o decoro se apreende, hiperbólico, como idealização, na medida em que amplifica a seletividade referida, diminuindo os efeitos de descontrole de que brotam, desproporcionais, as primeiras politipias e as radicais de 1999. Estabelecidas, assim, as seqüências, aclaram-se as prescrições do rigor e da estreiteza da poética das politipias reunidas, que, em contradição com os momentos extremos expostos, exibem-se como a pluma arrepiada do leque referido.
Dessarte, a poética idealizante só se desvenda quando não é senão gênero entre outros; nela, o corte compositivo, a homogeneidade coerente, a janela pacificadora, a visão elisiva do olhar se evidenciam como decoro e invenção. A pluma, explicitada como idealizante, é arrepio parcelar em 1999, quando, pela primeira vez em Sérgio, incluindo-se na consideração seus desenhos, aquarelas, gravuras feitos desde o decênio de 70, a multiplicidade prolifera ao acolher, sem seleção prévia, muito de tudo. Reclassifica-se, no leque aberto, a linoleogravura, mas também a recém-surgida politipia, irrompendo, ao mesmo tempo, outras artes do papel, como a técnica mista, antes inconcebível em razão das restrições executivas ordenadas por decoro técnico, que ressalta como o critério principal do conjunto de obras. Pois a técnica mista é reveladora, nas vertentes simultâneas do ético e do estético, da mudança ocorrida: antes excluída, até como mera possibilidade, por preceitos e decoros de coerência técnica, torna-se foco privilegiado, pois contestador, da reflexão sobre a obra anterior de Sérgio.
Ao aparecer, a politipia, como se viu, tangencia a linoleogravura e, sendo heterônoma sua poética, sua idealização lírica vem flutuando desde os anos 70. Dominante nas aquarelas, desenhos e gravuras, tal lirismo é hegemônico, não se fazendo notar por falta de quaisquer contrastes ou diferenças no conjunto da obra, pois somente detectado como arrepio no leque estendido entre as sutilezas idealizantes, sua posição, e o extremo oposto das brutezas de sentido pop ou expressionista. O retrato de Cíntia com broche de peixe, a um tempo diretíssimo e refinado como citação abrupta de ourivesaria animalista merovíngia ou longobarda, traz a seqüência anterior de auto-retratos de Sérgio, nos quais o brutalismo expõe todas as imagens; no cotejo da técnica mista de Cíntia e dos linóleos com Sérgio, o brutalismo não desmente a generalidade hegemônica da idealização pois opera como espécie de lapso, recorrentemente explicitado no presente da viragem artística, em que cintila a multiplicidade inclusiva e divergente de obras. Outro exemplo, o do peixe-zepelim de 1998, todo ele pop no grafismo simplificado no alto de mais áreas minuciosamente elaboradas, recorre na cabeça feminina do ano seguinte, linóleo com os mesmos traços de gibi.
As interferências externas ao campo abrangente da idealização aparecem como ocorrências que, recorrentemente, afiguram-se como os possíveis de uma atualização futura a partir da posição presente que, corrente no passado construído, coincide com tal futuro, também construído, posição que é a do mesmo presente da reflexão de Sérgio e da deste texto, de fins de 1999. Aproximando diversas projeções, artísticas, textuais, outras, este fim de ano é, assim, ponto de acumulação, não mero entorno, das conseqüências tiradas por Sérgio sobre o reviramento de sua obra. Pois a delimitação do lirismo como gênero entre outros corresponde, invertendo-se o sentido temporal, à sua amplidão, tempo de Sérgio e outros artistas principiantes nos anos 70, em que se estampa uma dupla e simultânea orientação, a invenção do cotidiano e a pesquisa da técnica. Estes artistas, quando ligados à gravura, têm na técnica o centro daquilo a que, então, se chama "o fazer", recuando o objeto da figuração, neles diferenciado e reduzido a assunto ou narração, quando não, desprezado como ilustração.
Claro está que o abstracionismo, a arte conceitual, o neo-expressionismo não lhes dizem respeito, pelo menos enquanto estilos, de modo que a figuração não se estabelece como pendência de um primeiro literário ou de outro, político ou "social", como se diz então de modo pitoresco, que objete aos artistas posições que os subordinem e lhes tornem heterônoma a arte. Sem discurso pronto que dirija a gravura, Sérgio e seus amigos comprazem-se com o cotidiano, não decerto com o que é cúmplice da exploração, pois são socialistas, mas com o que, fugindo da heteronomia, deve ser de todos, e que alheie por isso, toda fala autoritária. Essas posições diferem de outras, igualmente ligadas à figuração dos anos 70: a tendência, na maior parte das posições referidas, é crítica e valorizadora da técnica. Quanto a Sérgio, o cotidiano, sendo arte, para ele, democrática, está inicialmente em desenhos de interiores, vasos e outras cotidianeidades, mas também de brinquedos da filha, depois em aquarelas e gravuras, nas quais afloram, dominantes, peixes, fauna e flora marinha, marinhas. Sendo as coisas da arte menores, o envolvimento em aura não entrega o cotidiano ao que se idealiza com lirismo suposto subjetivo. Pois, lírico e idealizado em si mesmo, o cotidiano associa as artes de Sérgio a idealizações sem transcendência, dessublimando-se, assubjetivo, o lirismo: se estivesse de pé o campo doutrinal vindo da poética greco-romana e interrompido no século XVIII, falar-se- ia, aqui, em gênero.
Conseqüência da definição das coisas menores é a estabilidade: na idealização imanente, os objetos se estabilizam para não desviar do "fazer" a pesquisa artística; palavra-de-ordem de Sérgio, o fazer é, a um tempo, o objeto imobilizado por aura e a técnica tornada ágil por essa libertação frente ao mesmo objeto. A idealização deste corresponde, assim, à hiperidealização da técnica, que se hieratiza, poética. Não se segue disso, porém, qualquer niilismo, porquanto, como se viu, a obra não depende de um outro que lhe dê sentido ou ser. A coisa aparece em Sérgio como junção de objeto e técnica, alheia ao niilismo de espécie político-sociologizante que domina nos anos 70 e de que a noção-panacéia "contexto" é hipóstase a um tempo inculta e feroz. O niilismo de "contexto", enquanto incessante diferimento da coisa, trama-se mais tarde como plenitude monstruosa no assalto ao bem público e no correlato genocídio programado pelos malfeitores ranfástidas, que já não floreiam "contextos", pois vociferam uma paralisante "globalização", com a qual o bando arribado ainda é englobante, portanto, arrogante ditador de normas: com ameaças, medos, terrores, transcende, indecoroso, a coisa, alegando qualquer indecência como razão. Não há, em Sérgio, diferimento de qualquer sorte: seu cotidiano socialista está articulado no ético e no estético
O lirismo das coisas menores implica, pois, a política, a qual, entretanto, não se erige como norma do poético, recusada por autoritária. Assim, dispensando o geral das doutrinas, Sérgio pode atualizar alguns trechos seus sem o saber, o que exemplifica a manutenção, nele, das duas faces do juízo, a arte e a moral, como vem dos Gregos e Romanos e como se declara nos séculos XVI e XVII. Não é fortuito que também os avatares do jdanovismo mantenham, no tempo, articulação contra-reformista, pois, não menos neles, o artístico pende de diretivas moralizantes que calam a política. Na junção do ético e do estético, retoma-se, nos anos 70, conjunto anterior de textos, em que a distinção de arte e artesanato prevalece, como então se escreve, na unidade da obra. O artesanato, como se lê nos escritos daqueles anos, moraliza a arte como se a politizasse, enquanto a impede de migrar para posições, apresentadas estereotipadamente como sendo as da arte pela arte: é na articulação distintiva que Sérgio e seus amigos fundam o primado da pesquisa técnica a um tempo na estética e na ética. Estando imobilizado o objeto, a idealização da técnica evita a oposição da universal razão ao singular sentimento, disjunção dogmática que a esquerda de Sérgio recusa embora mantenha o primado da pesquisa técnica, hiperidealizada, pois a um tempo poetizada e poetizante.
Na idealização da técnica, o objeto desfalece. Sérgio vai pescando nos anos 80 e 90 seus peixes linoleográficos e passa as férias produzindo locomotivas, imagens, quando não estantes ou vasos de plantas. Em 1999, porém, seus peixes se afogam na tempestade que os colhe enquanto deslizam pelas seqüências gráficas interferentes. Escancarando-se as fronteiras da pesquisa técnica e do objeto que está à mão, pacificado, a técnica, antes estritamente obedecida enquanto projeto, de que é exemplo a rígida sucessão das cores na impressão das linoleogravuras, deslineariza-se: desfeitos os itinerários asseguradores, os percursos emaranham-se, dedálicos e descontínuos, pois a improvisação toma conta da impressão. A viragem de 1999 desfaz as relação das duas espécies de gravuras com o acrescentamento da técnica mista, aqui referida como desmentido das idealizações antes dela dominantes. A sobrevinda de uma terceira arte do papel no momento em que tudo se embaralha com a volta, também, de vasos, agora de bromélias e orquídeas, é impeditiva da concepção de relações entre seqüências ou, de modo mais abrangente, de intersecção de conjuntos objetais, como os da aquarela e do desenho dos anos 70 e 80: aqui, nada se distingue ou se localiza.
Não se sustenta mais a idealização, cujo fechamento o retorno de objetos dos decênios precedentes intenta em vão reforçar, pois até a rotina e a emotividade se evidenciam inacessíveis quando os controles obsessivos estão desativados. Desejante, o lapso atravessa as seqüências, já na irrupção da politipia que desloca a linoleogravura e, com ela, amplia o campo da figuração como técnica e objeto: a pesquisa artística controlada e ritualizada em linoleogravuras idealizantes se oferece como emotividade técnica, sinal que a politipia nascente ressitua adiante, quando as seqüências das duas gravuras passam a correr paralelas. Mas, com a segunda viragem reduzida a pena entre muitas de leque artístico, a idealização exibe-se emotivamente arrefecida, a significar a ruptura das articulações vigentes. Da afirmação de 1998, à ruptura de 1999, aclara-se a reclassificação de posições; com a desidealização das espécies artísticas, das cotidianeidades aos peixes não menos idealizados, as posições desarticulam-se, muito embora o sinal não seja, necessariamente, disfórico, declarando-se Sérgio eufórico com a liberdade que a viragem traz para a sua arte.
A fratura das artes conhece dois momentos, pois, tanto em 1998, surgida a politipia, quanto em 1999, generalizado o reviramento, rearticula-se ou desarticula-se seu campo. A politipia afeta em 1998 a linoleogravura, como se viu, de modo que o segundo abalo se exerce sobre as duas, enquanto estáveis e interferentes. Mas, se em 1998 a desobsessivação da linoleogravura ocorre com o aparecimento da politipia, mantendo-se, contudo, a idealização, em 1999 a mesma desobsessivação sobrevém acompanhada de desidealização intensíssima. A liberdade mantém-se como emoção na coisa, afetando mais a técnica que o objeto, também eles abalados. O replantio de vasos linoleográficos e, principalmente, a técnica mista indicam a ampliação do campo das artes. Os dois momentos constroem-se como lapso, triunfo do desejo de Sérgio, e propõem a viragem como desobsessivante, tanto técnica, quanto objetalmente; o objeto pode ser considerado iconográfica e estilisticamente, rompido e desarticulado de modo imprevisto no naufrágio da posição antes bem ancorada.
Os momentos de 1998 e 1999 distinguem-se como ocorrências reciprocamente irredutíveis ou como encadeados sucessivamente: são hipóteses que entendem as viragens como triunfais lógicas de lapso em movimento deslocante ou destroçante ruptura. A irrupção da politipia modifica a posição de Sérgio, mas a idealização mantida desde o começo de seu trabalho nos anos 70 não está abalada; por isso, a primeira incidência do lapso, por acrescentar uma gravura desconhecida ao repertório gráfico, fornece, no afirmativo da ocorrência e de sua idealização, argumentos que valorizam a segunda viragem como incidência determinante; pois, em 1999, todas as artes estão subvertidas e a idealização, restrita a uma só pena, arrepiada. A segunda incidência reverte posições, desfazendo em todas as artes o que estava feito, assim, a própria noção do fazer, essencial à poética idealizante de Sérgio. É um segundo lapso, efeito do primeiro, retrospectivamente, pois há enunciação e evento em ambos, afetando a ruptura a própria politipia, tal como surgida em 1998. A hipótese, aqui, é propagar-se, sem registro, o abalo de 1998, imposto o silêncio do objeto que liga as duas datas.
Nas idas e vindas entre os momentos de 1998 e 1999, a posição de enunciação é determinante, pois tanto se pode separar um de outro mecanicamente, quanto se os pode aproximar heuristicamente: aqui, o abalo precedente causa o subseqüente, sendo por este explicitado, de modo que um se propaga no outro em dois sentidos. Dramatizando-se o efeito do segundo, obtém-se mais barulho que eficácia, pois o que, em 1999, está tracejado a partir de 1998 é o sem-volta das artes, relativamente às posições precedentes, excetuando-se a idealização nas diversas técnicas e objetos. Mas, em 1999, a politipia, como as demais artes do papel, aparece como abandono da idealização cultivada em vasos e peixes, não requerendo a tesoura compositiva, uma vez que a composição está desativada pela mistura, na qual a justaposição prevalece: a parataxe estende-se, da politipia, à linoleogravura e à técnica mista, não se fazendo seleção de partes em vista de unidade compositiva.
A posição brutalista da politipia, associável ao pop ou ao expressionismo, conquanto não haja escolha estilística em Sérgio, afeta a linoleogravura e a técnica mista que se rebatem nela, distantes já a seqüência rígida da execução e o decoroso fechamento dos procedimentos. Por isso, no concernente à impressão, a politipia, afastada a composição por tesoura, põe em evidência o aleatório do registro gráfico. Assim, a sobreposição das impressões segue curva gaussiana, acumulando-se as tintas na área central do papel, em detrimento das bordas. Tal efeito tem relevância, porque confere às regiões limítrofes do papel o valor de molduras irregulares e tênues, fantasmagorias que assombram o contemplador.
Não há centro compositivo, mas acúmulos em zonas centrais, nem molduras isolantes, mas fantasmas transicionais: a impressão brutalista é correspondida por ação desassombrada da mão na técnica mista, como também na linoleogravura, pinceladas que, retornando à politipia, metamorfoseiam-se como aplicação direta de tinta gráfica, ora com rolo, ora com recorte de linóleo, na produção de tinturas rutilantes. Desmanteladas as convergências compositivas e filtradas as técnicas, agregam-se aos referidos pontilhismo e simbolismo efeitos pop e expressionistas, de sorte que em ambas as gravuras as técnicas se misturam e, justapostas, nada unem. A intervenção manual vinda de fora da prensa, de pincel, rolo, recorte, desmancha os resíduos procedimentais da arte de Sérgio que oscila, em 1999, como as outras identidades, não menos idealizadas, de espécie estilística, iconográfica, matérica ou outra.
Na desidealização, doravante hegemônica, o emotivo pende do riso, logo, de olhos tornados bocas rasas; brabo olhar, tal riso seca olhos anímicos, impedidos de contemplação celestial. Na oscilação de Sérgio, acede-se, finalmente, ao gênero baixo, que insiste no abalo da elaboração artística, coincidindo os tempos do mesmo abalo e o desta enunciação. É no escancaramento atual que se consideram aspectos artísticos antes desprovidos de visibilidade, como o estilo e a iconografia, no que diz respeito ao objeto. É claro que Sérgio não estiliza na linha das tendências modernas, pois o que está em jogo, nele, é o confronto da idealização e da desidealização em todas as artes. Neste sentido, a recentíssima produção de cabeças, feitas de partes justapostas disponíveis de linóleo, não pode ser desconhecida porquanto em tudo distinta da composição; é multiplicidade que não forma constelação, mas, como magma, migra. Em posição aberta como esta, e humorada, nenhuma direção se fixa e, longe do cristal, suspendem-se as articulações antes vigentes. Triunfal em Sérgio, o lapso não solicita balanço de resultados futuros, não havendo ganhos ou perdas contábeis.
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